CACHO DE UVAS

A rolha do vinho nosso de cada dia

Por Humberto Amorim

A primeira coisa que o enófilo faz, antes de sentir os aromas e provar os sabores do vinho escolhido, por uma questão de tradição e segurança da qualidade, é verificar visualmente, e depois cheirar a rolha desarrolhada pelo sommelier, que permanece atento, esperando o sinal de que o vinho foi aprovado. Aposto que já passou por isso, ou já viu essa cena em um restaurante. É um momento mágico.


Mas fascinante mesmo é a história do papel das rolhas de cortiça desde a iniciativa de Dom Perignon ao usa-las para vedação de espumantes, sem imaginar a revolução que causaria. Não é à toa que os portugueses permaneçam orgulhosos pelo fato de Portugal ser o maior produtor mundial de rolhas de cortiça. São produzidas 44 milhões de unidades por dia. O maior volume dessa produção vai para exportação, mas boa parte fica por lá, para abastecer as vinícolas do país. Os portugueses também costumam dizer que uma boa rolha é aquela visualmente perfeita, como uma mulher bonita. Tive a sorte de constatar durante encontro com Mário Neves, famoso produtor de excelentes vinhos portugueses, que o terror de todo produtor de vinho é o famigerado “gosto de rolha”, um defeito que põe a perder a melhor bebida. Mário também me deu dicas importantes para a rolha conservar o vinho dentro da garrafa: “Mantém a garrafa do teu vinho em posição horizontal para que haja contato do líquido precioso com a rolha, e assim ela não seque ”. Mário confirmou que existem relatos, ainda que raros, de que já se retiraram rolhas em bom estado de garrafas que tinham mais de cem anos. Diante desses fatos, fui levado a crer que a cortiça continua sendo a matéria prima para se fabricar a rolha ideal do vinho.

No campo a cortiça é retirada, a cada nove anos, da casca da árvore do Sobreiro, e existem alguns espécimes que vivem mais de 300 anos. Para se produzir uma rolha de vinho de alta qualidade, o Sobreiro deve ter pelo menos 50 anos, embora a primeira safra possa ser obtida 25 anos após o plantio. Já pensou investir numa plantação e ter que esperar todo esse tempo para ter retorno financeiro? A cortiça é um produto leve, macio, que não afunda, impermeável contra líquidos e gases. A árvore da cortiça cresce predominantemente em Portugal, Espanha e norte da África. Em Portugal encontra-se 50% do total da produção mundial, principalmente por causa do clima e do tipo de solo que mantém as árvores crescendo sem parar. O detalhe formidável é que a casca da árvore do sobreiro é retirada inteira do tronco e, novamente, nasce uma nova casca no lugar. Assim, todas as árvores são fontes constantes de matéria prima.


As rolhas são elaboradas de acordo com os pedidos das vinícolas. A próxima vez que abrir o seu vinho verifique cravado na rolha, a logomarca da vinícola ou o nome do vinho. Alguns anos atrás, começou uma grande polêmica no Mundo de Baco depois que produtores da África do Sul, Austrália e Nova Zelândia aderiram a alternativa do “screw cap“ (tampa de rosca), eles foram seguidos por produtores da Argentina e Chile que também resolveram aderir ao uso de “screw caps”. Os dois países “hermanos” foram mais além, experimentando rolhas sintéticas como possíveis substitutas da rolha de cortiça justificando para tal que a produção não estava mais atendendo a demanda mundial e o fim definitivo do vinho “bouchonée”. A palavra “bouchonée” significa que a bebida está contaminada por um fungo transmitido pela rolha de cortiça. Atualmente, segundo informes, 5% das garrafas do mundo estão “bouchonée”.

Polêmicas à parte, temos que levar em consideração, além da verificação visual, se tudo está bem com a rolha, sem deixar de perder de vista todo o charme contido na ação conduzida pelo sommelier, tão valorizada pelos “apreciadores tradicionalistas” que não abrem mão do elegante ritual que marca o primeiro encontro do vinho com os nossos sentidos. Resumindo, acho que o uso do “screw cap”, da rolha de plástico, ou de vidro, não se configura como ameaça preocupante para determinar o fim do cheirar a rolha, que, diga-se de passagem, é uma longa e bem preservada tradição mantida nas interações dos enófilos com suas ampolas maravilhosas.

Vale mencionar que países como Estados Unidos, China, Rússia e Brasil cada vez mais exigem o material de cortiça como vedante de bons vinhos. Segundo alguns, o uso da rolha sintética é associado a produtos de baixa qualidade. Eu não concordo com isso. Tem preconceito sobrando nessa parada. Importante é o seguinte: a rolha de cortiça de um bom vinho sempre causa uma boa recordação, e o uso da matéria prima do sobreiro está longe de ter os seus dias contados. Ainda bem.

Dica do meu coração. Colecionem as rolhas de cortiça dos vinhos degustados. Marque nelas com caneta a data e a festividade. Eu faço isso há anos e guardo boas recordações.

Santé!

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