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Estupro de indígena por policiais dentro de delegacia no Amazonas e expõe colapso do sistema de custódia

Mulher Kokama foi mantida por nove meses em cela masculina com o filho recém-nascido; laudo confirma abusos e autoridades seguem sem respostas efetivas

Por nove meses, uma mulher indígena da etnia Kokama viveu um pesadelo institucionalizado dentro da 53ª Delegacia de Polícia Civil de Santo Antônio do Içá, no interior do Amazonas. Presa com o próprio filho recém-nascido, ela dividia a cela com homens e sofreu estupros recorrentes cometidos por ao menos quatro policiais militares e um guarda municipal, segundo denúncia feita à Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM).

A barbárie, que deveria indignar as mais altas instâncias do sistema de justiça e segurança pública, ainda aguarda providências efetivas. O crime, já comprovado por exame do Instituto Médico-Legal (IML) — que atestou lesões compatíveis com violência sexual — ocorreu sob custódia do Estado, dentro de uma instituição que deveria garantir proteção e legalidade.

Presente na cela desde novembro de 2022, apenas 20 dias após dar à luz, a mulher foi transferida para a unidade prisional feminina de Manaus apenas em agosto de 2023, após denúncias feitas por outras presas e a mobilização de defensores públicos. Durante o período, foi submetida a abusos sexuais, trabalho forçado e ameaças de morte, segundo relatos formalizados no processo.

Impunidade e silêncio institucional

O caso ganhou repercussão nacional a partir de uma reportagem publicada pelo portal Sumaúma, e desde então, foram instaurados um Inquérito Policial Militar (IPM) e procedimentos na Corregedoria-Geral da Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM). No entanto, nenhum dos agressores foi oficialmente afastado ou identificado publicamente até o momento.

O Ministério Público do Amazonas (MP-AM) realizou escuta humanizada da vítima e acompanha a apuração dos fatos, mas ainda não apresentou denúncia formal contra os acusados. Já a Defensoria Pública do Estado entrou com pedido de indenização por danos morais no valor de R$ 500 mil, recusando propostas irrisórias entre R$ 35 mil e R$ 50 mil feitas pelo governo estadual.

Enquanto isso, a vítima permanece à margem, sem segurança garantida, sem justiça e com sua dignidade violada não só pelos autores dos abusos, mas por toda uma estrutura de Estado que falhou em protegê-la.

Um retrato cruel do racismo institucional

A gravidade do caso ultrapassa a esfera individual. A permanência da vítima em uma cela masculina já era, por si só, uma violação dos direitos humanos e das normas do sistema penitenciário. Quando essa violação atinge uma mulher indígena, em situação de extrema vulnerabilidade, acompanhada de um bebê, o episódio escancara o racismo institucional e a precariedade das políticas de proteção aos povos originários.

O município de Santo Antônio do Içá, como tantas outras cidades do interior do Amazonas, não possui unidades prisionais femininas — e as delegacias, mesmo sem estrutura adequada, funcionam como presídios improvisados, onde o risco de tortura e violência sexual é permanente.

Por justiça e por memória

Mais do que punir os culpados, é urgente reparar a vítima com dignidade, garantir sua segurança e transformar este caso em um divisor de águas. O que aconteceu em Santo Antônio do Içá não pode ser normalizado ou esquecido. É preciso romper o ciclo de silêncio, inércia e impunidade.

A omissão das instituições diante de uma denúncia comprovada — e a permanência dos agressores fardados e armados — representa uma afronta não apenas à Constituição, mas à humanidade.

Chega de silêncio. Chega de conivência. O Estado precisa responder. Agora.

Foto: Portal Sumaúma

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