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Voz afro-indígena amazonense ganha destaque nacional com relançamento de “Um Rio Sem Fim”

Verenilde Pereira emerge como referência literária ao resgatar memória afro-indígena da Amazônia

O relançamento do romance “Um Rio Sem Fim”, da escritora e jornalista Verenilde Pereira, se tornou símbolo de reconhecimento para uma das vozes mais originais da literatura amazônica. Publicado pela primeira vez em 1998 e reeditado pela Alfaguara em julho de 2025, o livro foi celebrado na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), colocando a escritora amazonense no centro do debate nacional sobre diversidade e representatividade cultural.

Mais do que um retorno às prateleiras, a nova edição marca o ressurgimento de uma autora que permaneceu invisibilizada por décadas, mas cuja escrita nunca deixou de pulsar. O romance, que mistura ficção, memória e ensaio, narra com delicadeza e profundidade a experiência de meninas indígenas submetidas à educação missionária, revelando um olhar crítico sobre os mecanismos de imposição cultural. Ao mesmo tempo, constrói uma poética do pertencimento, enraizada nas águas e nas vozes da Amazônia.

“Um Rio Sem Fim” emerge como manifesto literário. Ao costurar experiências afro-indígenas, a obra ilumina narrativas silenciadas pela história oficial e oferece uma nova forma de ler a Amazônia: não apenas como paisagem exótica ou reserva de biodiversidade, mas como espaço de sujeitos, memórias e ancestralidades.

Esse movimento se conecta a um momento crucial da literatura brasileira, que revisita suas origens e amplia espaços para vozes plurais. Não por acaso, o pesquisador Rodrigo Simon de Moraes, da Universidade de Princeton, definiu a obra como uma das pioneiras da literatura afro-indígena, ampliando sua repercussão no Brasil e no exterior.

Universidade e crítica rompem o silêncio

O reconhecimento recente de Um Rio Sem Fim só foi possível graças a um esforço conjunto da crítica e da universidade. A UEA, por meio de professores e estudantes, ajudou a sistematizar estudos sobre a obra, destacando seu caráter inovador. O artigo “Da nascente à foz”, publicado na revista Opiniães da USP, apontou como Verenilde subverte estereótipos e desafia as formas tradicionais do romance, criando uma literatura de fronteira.

Em 2023, a live “Era uma vez… tantas Marias”, conduzida pelo professor Allison Leão, foi um dos primeiros movimentos de resgate público da autora. A partir daí, sua obra voltou a circular nos meios acadêmicos e culturais, até ganhar, em 2025, a consagração na FLIP.

Verenilde com a escritora Conceição Evaristo, em Portugal

Do anonimato ao protagonismo

A trajetória de Verenilde S. Pereira é marcada por resistência. Nascida em 1956, iniciou a carreira no jornalismo e trabalhou junto a organizações indígenas, como a OPAN, antes de se dedicar à literatura. Por muito tempo, sua produção permaneceu restrita a círculos locais, longe da visibilidade nacional. Hoje, ao ser relida e celebrada, a escritora conquista o lugar que sempre lhe pertenceu: o de referência literária da Amazônia.

Verenilde com Ailton Krenak, em 1986, quando já demonstravam seu interesse pelas questões indígenas, negras e amazônicas, em sua primeira grande reportagem, ‘Eles não são aves raras, são gente, até em marte’

A presença de Um Rio Sem Fim na FLIP 2025 simboliza não apenas a consagração de uma autora, mas também uma mudança de paradigma no mercado editorial brasileiro, que passa a reconhecer o valor de narrativas afro-indígenas e amazônicas.

Uma voz que atravessa o rio

Mais do que literatura, a obra de Verenilde é resistência, memória e afirmação identitária. Suas páginas transportam o leitor para um universo em que rios, povos e histórias se entrelaçam em uma narrativa que desafia o esquecimento e afirma a pluralidade da Amazônia.

Ao relançar Um Rio Sem Fim, o Brasil não apenas recupera um romance esquecido, mas reafirma que a Amazônia é território de cultura, crítica e invenção. Uma voz que veio do rio, atravessou o silêncio e agora encontra o mundo.

Fotos: Divulgação/Arquivo JC

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